O risco de simplificar o fenômeno Bolsonaro. Por Fred Melo Paiva


Publicado originalmente na CartaCapital
POR FRED MELO PAIVA, jornalista
Depois da passagem de Jair Messias Bolsonaro pelo Roda Viva, hoje também conhecido por Roda Morta, a internet tratou de fabricar a imagem que aparentemente resultava da sabatina ao presidenciável, cuja audiência bateu recorde na TV Cultura e alcançou o primeiro lugar na repercussão das redes sociais. Em tal imagem o candidato não constava no centro da roda de jornalistas – fora substituído por um burro.
Numa análise supostamente mais arguta, a entrevista na qual Bolsonaro foi mais uma vez convidado a expor seu compêndio de barbaridades teria produzido na verdade a imagem invertida: ao centro, o candidato cuja fala odiosa repercute aos seus – e quem sabe aos indecisos –, um misto de autenticidade, coragem, nostalgia e antipolítica; no seu entorno, a tropa de burricos que, no lugar de instá-lo às propostas (quando o fizeram, ouviu-se a inacreditável referência ao “pergunte no Posto Ipiranga”), só fez levantar-lhe a bola para obrar opiniões infames e distorcer a história, duas de suas especialidades, se não as únicas.
“Passeio de Bolsonaro no Roda Viva”, cravou, no calor da hora, o professor de Comunicação Fabio Malini, coordenador do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura da Universidade Federal do Espírito Santo (Labic), um dos mais importantes grupos de estudo das redes sociais no Brasil. “Há uns 30 vídeos curtos para a equipe da campanha editar.
Todos terão o ‘oclinho’ [referência a um meme popular]. Bolsonaro vai esmagar adversários moderados no debate. E até seus opositores gostarão de vê-lo em cena. Ele faz internet na televisão.” Com direito a 6 segundos e meio no horário eleitoral e uma inserção de 30 segundos na tevê a cada cinco dias, é particularmente importante para Bolsonaro tornar-se o ás, ainda que asno, das redes sociais.
Na noite de segunda, o Labic inaugurava um novo modelo para aferir rejeição e aceitação dos presidenciáveis em eventos pontuais como a entrevista de Bolsonaro. Para surpresa de Malini, o resultado divulgado na quarta-feira dava conta de que “Bolsonaro pautou todo o ecossistema político, mas as redes contrárias ao candidato mediaram mais a repercussão”.
De cada 10 compartilhamentos sobre o tema, apenas 3 foram favoráveis a ele. “Pelo jeito, a performance do capitão não foi aquilo que se esperava. Mas provou que é o político que gera mais tráfego, atrai a audiência da tevê para a internet e vice-versa.”
O verso e o reverso da imagem do burro não encerram a guerra narrativa dos apoios e rechaços ao candidato da extrema-direita. Antes, é a mesma falta de compreensão do fenômeno de sua candidatura que se podia verificar nos meses que antecederam a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos.
Entender o mecanismo das forças que mantêm as chances de Bolsonaro em bases relativamente confortáveis parece o melhor caminho para combatê-lo eficientemente enquanto há tempo.
Foi assim que a cientista social Esther Solano Gallego, das universidades Federal de São Paulo e Complutense de Madri, dedicou-se a conhecer o pensamento e as demandas de um grupo heterogêneo de admiradores de Bolsonaro, permitindo desmitificar o “Mito” e seu eleitor, comumente igualados na equina condição de símbolos da burrice e do atraso.
As conclusões de Esther Solano revelam motivações para o voto em Jair Bolsonaro muito mais profundas do que essa relativa ao QI dos “bolsominions”. Ei-las:
1. Bolsonaro representa o tipo de político honesto em contraposição à “classe política corrupta” – ocuparia, assim, o espaço vazio do “outsider” que, não por acaso, a direita desta vez não conseguiu emplacar (só o instituto de pesquisas Vox Populi testou 15 desses nomes apenas em 2018).
2. Sua retórica do “bandido bom é bandido morto” encontra respaldo na visão de que o “cidadão de bem” é uma vítima abandonada, enquanto o criminoso está superprotegido pelo Estado. A segurança pública é “fixação” plenamente justificada, diga-se, pelo recorde de 62,5 mil homicídios registrados no País em 2016 (estes são os últimos dados disponíveis).
3. O bolsa Família e as cotas raciais universitárias são negativos, por fomentar a preguiça e o parasita do Estado. O self-made man é o modelo de sucesso.
4. O Movimento Negro, o Feminista e o LGBT representam grupos que sofrem preconceito, mas que se vitimizam em excesso, a fim de obter regalias – ao passo que seriam, também, indutores do “caos” que desestrutura a “família-padrão”.
5. Os jovens identificam Bolsonaro como rebelde. É uma opção política que se comunica com eles e se contrapõe ao sistema. “Se, nos anos 1970, ser rebelde era ser de esquerda”, explica Solano, “agora, para muitos desses jovens, é votar nesta nova direita que se apresenta de uma forma cool, disfarçando seu discurso de ódio em forma de memes e vídeos divertidos.”
6. Vários dos entrevistados que votam agora em Bolsonaro votaram antes no PT, em especial nos mandatos de Lula. Justificaram a escolha do petista com argumentos muitos parecidos aos que explicam o voto atual na ultradireita: a proximidade com o povo, o carisma e a honestidade. Que, no caso de Lula, se teriam perdido.
“Bolsonaro vem do povo, da Zona Norte carioca, da Zona Leste de São Paulo, da classe média antiga de Belo Horizonte e Porto Alegre”, confere o presidente da Vox Populi e colunista de CartaCapital, Marcos Coimbra. “Ele fala errado, diz bobagens, e o povo se vê representado.”
Além dessa classe média tradicional, que divide com o militar da reserva as mesmas ideias conservadoras a respeito de temas do comportamento, sua base eleitoral abarca ainda a classe média alta do interior do País, aquela “de chapéu e caminhonete” que, em viagem no tempo, desembarcou há pouco na Guerra Fria. “São homens jovens de renda alta que, se pudessem, matavam todos os comunistas.”
A pouco mais de dois meses das eleições, é prudente não contar com o esfarinhamento da candidatura Bolsonaro. Há pelo menos três anos ela se constrói no vácuo da tradicional arrogância da própria direita – que, tendo operado o golpe, se achou na condição de fabricar seu candidato, mas, ao que indicam as pesquisas, a linha de produção não conseguiu passar pelo controle de qualidade do eleitor.
Apesar de um Alckmin posto à venda como redivivo pelo abraço do Centrão, o fato é que, diz Coimbra, “parece não haver espaço entre a vida que melhorou com Lula e Dilma e a direita chucra que se impôs”. Assim um segundo turno pode mesmo cair no colo do capeta.
O deus da direita tradicional, chamado O Mercado, captara os sinais do apocalipse e já se vinha preparando para o exercício daquilo que em nada trai sua crença ou história: tá no inferno, abraça o Bolsonaro.
Dessa forma, em meados do mês passado, o candidato que faz do economista neoliberal Paulo Guedes o seu “Posto Ipiranga”, foi aplaudido 12 vezes por empresários em evento com presidenciáveis na Confederação Nacional das Indústrias (CNI). Ciro Gomes saiu vaiado.
Dois dias depois, O Mercado pronunciou-se em mensagem psicografada no Twitter por um dos maiores gestores de investimentos do Brasil, Henrique Bredda, da Alaska, que havia acabado de se ver com Bolsonaro: “Tivemos excelentes impressões até agora. Desmistificou muita bobagem que temos lido por aí. Podem descartar 80%, 90% do que andam escrevendo”.
A esta altura, a estratégia de Bolsonaro para vencer a esquerda em um provável segundo turno conta com o voo de galinha de Geraldo Alckmin; classificado à finalíssima, espera a bênção de O Mercado e, por conseguinte, da própria direita tradicional.
Para tanto, é ótimo que diga e repita, como tem feito, não entender coisa alguma de Economia, passando providencialmente por burro e sugerindo uma espécie de terceirização de seu governo.
Para O Mercado, tanto melhor que tenhamos no Palácio do Planalto alguém talhado a tratar na ponta da botina os movimentos populares que venham a se levantar contra privatizações e reformas que retiram direitos, sem falar no MST e MTST.
Estaríamos, enfim, adentrando o terreno do capitalismo autoritário em estado de arte, sob auspícios de O Mercado e a porrada (ver artigo à página 24). “Bolsonaro foi aplaudido porque gostaram do que ele falou”, disse o presidente da CNI, Robson Braga de Andrade. “Principalmente naquilo que ele demonstra de autoridade em relação a alguns desmandos que existem no Brasil.”
A “autoridade” de Bolsonaro não decorre apenas de sua retórica violenta. Partícipes do golpe desde o início dos protestos de 2013, quando reprimiam a esquerda e faziam selfiescom os demais, policiais militares têm especial afeto pela figura truculenta do capitão, que de quando em vez é chamado a apadrinhar turmas de formandos em escolas militares.
“Bolsonaro é o militar-padrão: boca dura, o cara que diz o que quer, que se apresenta para resolver o problema”, diz o tenente-coronel Adilson Paes de Souza, que, depois de 30 anos na corporação, se tornou um conceituado pesquisador da USP sobre a violência da Polícia Militar.
“Como uma polícia militarizada é sempre imagem e semelhança do Exército, o PM reconhece-se completamente num tipo como Bolsonaro. O policial assassino não se sente um assassino, mas um herói – e é assim que enxerga Bolsonaro quando ele diz que bandido bom é bandido morto.”
Simplificar o entendimento do fenômeno Bolsonaro à ignorância política de seus seguidores ou desdenhar sua base de apoio como inconsistente indica a mesma trilha equivocada que veio dar em Trump. O burrinho pedrês, de Guimarães Rosa, era burro, mas resistente. E, quando os cavalos ficaram pelo caminho, só ele chegou do outro lado do rio. 

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